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Valéria Ignácio


Será que o leitor que não fala outro idioma além do português se interessaria em pensar sobre a tarefa da tradução ou o que acontece antes que possa ser materializado para seu deleite um texto originalmente escrito em russo, alemão, francês...?

Prática cultural que ultrapassa a mobilização de idiomas, a tradução contemporânea tem estimulado muitas reflexões e novas problematizações vêm surgindo desde a segunda metade do século passado, até quando a tradução era considerada uma atividade acessória e, no senso comum, sem maior valor. Desde então, o tema não deixa de provocar polêmicas, dando origem a uma série de questões sobre a validade ou adequação de procedimentos no processo de interpretar uma mensagem de uma língua de saída para uma língua de chegada. A tarefa torna-se ainda mais complexa e exigente se o objeto da tradução é um texto literário.

Desde que comecei a fazer o Curso de Formação de Tradutores, na Casa Guilherme de Almeida, em abril deste ano, muito do que, antes, me chamava a atenção superficialmente ganhou outra dimensão, especialmente no que diz respeito a equivalências formais e informais. O tema é vasto e desperta divergências. Entre os que defendem a correspondência estrita e aqueles que são simpáticos a limites opostos, que beiram a adaptação, por enquanto, meus argumentos apontam para uma relação dinâmica que privilegie a negociação não apenas de sentidos, mas também da forma.

Não sou tradutora, mas me dedico a exercícios e pesquisas nessa área, buscando, em autores de prestígio, pontos de apoio. É mais especificamente deles que trata este breve ensaio, sem pretender de forma alguma esgotar o elenco, mas propor algumas possibilidades de entendimento sobre a história da tradução.

Já no século XIX, o teólogo, filólogo e filósofo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) propunha substituir a explicação pela compreensão do discurso estranho, nativo ou estrangeiro, por meio de uma atitude crítica empenhada em reconhecer, nos textos, aspectos da construção na língua e, a partir dessa aproximação, reformular o ato criador, dissipando mal-entendidos. Para ele, na arena de tradução de uma língua estrangeira, o desafio do tradutor se amplia, pois confrontam-se dois indivíduos, o que vive a própria língua e a transforma, e aquele que pretende penetrar a “expressão viva” e a dimensão histórica da enunciação do outro. O desafio da transmissão é tanto maior na medida em que a língua de origem é estrangeira e distante.

Roman Jakobson (1896-1982) ocupa lugar de destaque nessa constelação. Considerado um dos mais brilhantes linguistas do século XX, esse estudioso russo dedicou-se especialmente às funções da linguagem, diferenças e vizinhanças entre as formas de comunicação e as relações dos textos com os contextos. Para ele, a tradução se daria em três níveis: uma reformulação dentro da língua, a interpretação dos signos por meio de outra língua e a aquela que se vale de signos não verbais.

Walter Benjamin (1892-1940) é outro pensador, também alemão, que merece atenção no tratamento que dá aos modos de significação das coreografias móveis do texto, ao considerar, em um prefácio às próprias traduções que fez de Baudelaire (e que se tornou um clássico), a intencionalidade como elemento chave em oposição à ação servil do tradutor.

Na atualização dos pressupostos hermenêuticos, o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) explora a explicação da interpretação, de forma a demarcar manifestações ideológicas no campo sociocultural. No seu entendimento, é imprescindível valorizar as expressões do imaginário, que muitas vezes está diretamente relacionado à representação política de grupos sociais. Por isso, na apreensão de acontecimentos e sentidos narrados, seria necessário investigar a construção discursiva do texto em sua recriação da realidade, o que exige um trabalho de mediação simbólica.

Também merece destaque o crítico literário franco-americano George Steiner (1929-2020), especialmente pela contribuição da obra Depois de Babel – Questões de linguagem e tradução (2005), originalmente publicada em 1975, essencial e sofisticada pesquisa sobre o fenômeno da tradução, da linguagem e da literatura, que atualiza muitas das discussões sobre a tradução que tiveram lugar no século XX. Ele assinala a importância capital da constante sujeição da língua a transformações como fator determinante de dificuldades. “A língua comum está, literalmente a cada momento, sujeita à mudança”, afirma, apontando diferentes níveis de alterações, desde o surgimento de palavras, convenções gramaticais, inovações lexicais, modificação das dimensões e intensidades de ditos e não-ditos etc., num espelhamento da própria experiência humana.

No que o intelectual chama “mapeamentos do mundo”, por meio de expressões simbólicas, analogias, alusões, contrapontos irônicos e metáforas, residem, adverte ele, incógnitas que podem ser equiparadas à realidade mesma. Por isso, a capacidade de compreensão do tradutor deve, além do conhecimento fundamentado da língua de origem do texto a ser traduzido, ser acompanhada de estudo e percepção literários sobre o autor em questão, sem deixar de lado, entretanto, a exigência fundamental de dominar o contexto espacial e temporal de um texto.

Steiner aponta, como um dos pressupostos para a tarefa tradutória, que o desvendamento da intencionalidade do autor de origem é o “coração do processo interpretativo”. Essa premissa orienta muitos dos tradutores pós-modernos, que tomam como referência, em um trabalho de tradução, aspectos sociológicos, antropológicos, políticos, éticos, históricos, filosóficos e econômicos presentes no texto e no contexto de produção da obra.

Voltaremos ao assunto, na medida em que os estudos avançarem e, seguramente, haverá mais a compartilhar com os leitores do BalaioBlog. Por ora, gostaria de sugerir um par de reflexões. Ao ler uma tradução, lemos um texto equivalente ao original ou uma recriação? Como o tradutor justifica suas escolhas, da tradução literal à transformação de um texto original, num território de significados não estáveis?



Carlos Machado


Conheci há pouco tempo uma série de livros estadunidenses chamada The Best American Poetry, publicada anualmente desde 1988. Criado e editado pelo poeta e crítico literário David Lehman, esse anuário apresenta em cada edição 75 poemas de 75 poetas. Os textos são extraídos das revistas literárias americanas que circulam durante o ano de referência. A rigor, cada edição refere-se mais exatamente ao calendário poético do período anterior ao que aparece na capa. Cada poema vem com o nome do autor e o título da publicação de onde foi tirado. A sequência dos textos obedece à ordem alfabética dos nomes dos poetas. Seriam, portanto, os melhores poemas do ano, sem classificação. No final do volume, há uma seção com a lista completa das revistas que publicaram aquelas composições pela primeira vez.

Desde o número inicial, o editor convida um poeta ou crítico conhecido, que realiza a seleção dos poemas e ainda escreve um longo ensaio a respeito daquela colheita anual. Assim, o volume The Best American Poetry 1988, o primeiro da série, teve como editor convidado o poeta John Ashbery (1927-2017), considerado um dos grandes nomes da lírica americana no século XX. O anuário de 1992 contou com Charles Simic (1938-2023), ganhador do prêmio Pulitzer em 1990 e, depois, Poeta Laureado dos Estados Unidos em 2007. Na seleção de 1993, a convidada foi Louise Glück, que viria a arrebatar o Prêmio Nobel de 2020.

Em 1998, o celebrado crítico Harold Bloom (1930-2019) assumiu o papel de editor convidado para uma edição muito especial. Ele coordenou o volume The Best of The Best American Poetry 1988-1997. Bloom pegou todas as edições publicadas nos primeiros dez anos e delas selecionou os 75 melhores poemas, segundo seu critério. Em 2013 houve outra edição The Best of The Best, nesse caso para comemorar os 25 anos do periódico. Portanto, a publicação de David Lehman repousa sobre uma ideia excelente e ele acredita que o anuário oferece uma indicação confiável sobre a qualidade e a diversidade do que andam escrevendo os poetas nos Estados Unidos, ano após ano. Aliás, no prefácio à seleta de 2021, o próprio Lehman pavoneia as conquistas de sua série poética, lembrando que onze editores convidados se tornaram, depois, Poetas Laureados dos EUA. E, obviamente, não deixa de citar Louise Glück, a Nobel do ano anterior.

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Após folhear algumas edições, pensei comigo: seria interessante ter uma publicação dessas no Brasil. Seria? Em tese, a resposta é sim, mas na prática um anuário desse tipo não é possível entre nós. Para começo de conversa, diferentemente dos Estados Unidos, não temos a incrível quantidade de revistas de poesia e de publicações não especializadas que também divulgam poesia. A revista The New Yorker, por exemplo, é um semanário de interesse geral que normalmente publica ficção e poesia. Em cada edição o leitor encontra lá pelo menos dois poemas inéditos.

No volume The Best American Poetry 2018 – tomo aqui uma edição a esmo –, os textos foram extraídos de 58 publicações, sendo que 17 delas forneceram mais de um poema. Entre estas destacam-se a Poetry, revista bimestral publicada pela Poetry Foundation, e a já citada The New Yorker. Há ainda outras, como a Southwest Review (de Dallas, Texas); Birmingham Poetry Review (de Birmingham, Alabama, ligada à universidade desse estado); Gulf Coast (de Houston, Texas); The American Poetry Review (de Filadélfia, Pensilvânia); e The Sewanee Review (da University of South em Sewanee, Pensilvânia).

Ao analisar a lista de publicações que trouxeram à luz pela primeira vez os poemas da edição The Best de 2019, constatei um número ainda mais variado de títulos. Há desde revistas diárias online (como Poem-a-day, da Academy of American Poets, e Poetry Daily, publicada em Fairfax, na Virgínia) até antologias como a Freeman’s, na qual cada edição reúne textos de ficção, não ficção e poesia, baseados num tema específico. Mesmo sem conhecer essas revistas, noto que elas têm sedes em diferentes partes dos Estados Unidos. Numa visita aos sites, observa-se ainda que, editadas no epicentro do capitalismo mundial, quase todas elas são publicações comerciais, com anúncios e vendas de assinaturas. Isso vale, inclusive, para os títulos vinculados a universidades ou a entidades culturais. Se a seleção da Best American Poetry baseia-se em universo tão extenso e variado, é bem provável que de fato apresente um bom retrato da melhor poesia surgida durante o ano. Para reforçar essa possibilidade, não se deve esquecer que as publicações originais também fazem suas seleções. Quanto aos resultados comerciais da iniciativa, basta dizer que esse anuário americano é publicado pela editora internacional Simon & Schuster, empresa que certamente não sustentaria, durante mais de três décadas, um periódico deficitário.

Mas retorno: e se tentássemos fazer algo similar no Brasil? De saída, empacaríamos na falta de fontes. Quantas publicações literárias de circulação regular temos no país? Que eu saiba, contam-se nos dedos – e, talvez, lamentavelmente, de uma só mão. Revista de interesse geral que publica poesia, acho que só existe uma — a piauí. Sem recursos, as revistas acadêmicas circulam (quando circulam) de forma muito restrita: ficam dentro das próprias universidades. Além disso, não têm por hábito trazer à luz poemas inéditos. Por fim, os grandes jornais, cada vez mais culturalmente desenxabidos, abandonaram de vez a literatura. Portanto, não há como promover uma seleção de melhores poemas do ano com base em universo tão restrito. Seria como tentar pescar em rio seco.

Até aqui tocamos apenas na casca das impossibilidades. No miolo desse fruto amargo reside algo ainda pior: a minguada existência de leitores. Além do poder de compra, o interesse pela leitura é que constrói o mercado livreiro. Se entre nós sempre foi parca a procura de livros em geral, quem vai se importar com publicações de poesia? Aí está, portanto, o que há de pior na poesia brasileira. O problema não se localiza na poesia em si, mas na falta de divulgação, na escassez de leitores, na insuficiência de meios para a circulação de “livros à mancheia”, como pregava o poeta Castro Alves.


Carlos Machado é jornalista e poeta.

Para saber mais, o site do anuário The Best American Poetry: http://www.bestamericanpoetry.com/

Página do anuário no site da editora Simon & Schuster: https://www.simonandschuster.com/books/The-Best-American-Poetry-2022/David-Lehman/The-Best-American-Poetry-series/9781982186685

Marcílio Godoi

Não seria de se estranhar se na capa deste livro viesse uma tarja: “Poemas baseados em fatos reais”, para que ficasse decretado de partida o poder destes versos em nos expor nosso mons­truoso pecado original, a escravidão. Mas com Francis Ponge, que se reivindica “o poeta das coisas”, não o poeta do eu, aprendemos que a linguagem serve pra descrever, não para conven­cer ideologicamente ou provocar eventuais sen­timentalidades. Destes factuais novos Poemas negros, para citar a não pacificadora obra que o alagoano da serra da Barriga, Jorge de Lima, escreveu em 1947, partimos para um embate.

“Um verbo” já nos dá logo no primeiro poe­ma o tom do jogo que se inicia, o da linguagem provocativa a revolver com seu revólver não um incômodo, mas a ação de fustigar a nossa mais exposta chaga: racista. A ancestralidade surge aos poucos, mas definitiva, anunciando o poder de destruição que a linguagem possui. Incrível como pode-se imprimir com tanta elegância e ritmo um grito de guerra necessário e inquietante com “ga­ses paralisantes/silêncios mais pesados que o ar”. Percebemos a partir daí o impacto surdo e cor­tante do que já não se situa mais apenas na pele, esta cicatriz ulcerada encontra-se medularmente posicionada: “onde o chumbo não penetra/onde o aço não vai.”, no poema que dá título à coletânea.

Em “Dores e moendas”, soa-nos um canto dramático ao fundo, em que as ondas venci­das pelos navios negreiros parecem se chocar com a pós-dureza do engenho, ultrapassando em muito a questão convival da casa-grande com a senzala, vindo nos estapear o rosto num triângulo de açoites roendo, moendo, gemen­do Bahia, Minas e Pernambuco. A imagem do silencio “empedrado” no abafamento dos poe­mas soca-nos sequencialmente mais uma vez o estômago e se reprisa em alguns poemas da seção “Vozes”, como um mapa da violência, do emudecimento e do apagamento oficiais.

Na segunda parte, “Figuras” se erguem pela retomada da voz negra de Rosa Parks, Nina Si­mone, Madame Satã, entre outras personagens da diáspora negra, com destaque para o par de sonetos dedicados a Audálio Dantas.

A seção “Beco da Esperança” traz toda a circunstância absurda de poemas que parecem tirados de notícias de jornal. Na genial estro­fe de “Néons”, em que percebemos o ritmo dos corpos caindo na progressão métrica dos ver­sos, na inversão de acusações em “Boletim de ocorrência” ou ainda no premonitório “Congo­lês”, acode-nos a atualidade infernal dos poe­mas, em que as personagens operam em nossa mente um desfile de corpos marcados por uma condenação expressa à morte.

Na seção “Batuque”, o poeta parece dar­-nos uma instável resposta ao desesperador capítulo anterior e os poemas se avolumam em outra sonoridade, mais luminosa, evocando reverencialmente seu atavismo em versos po­tentes e nas figuras dos orixás que se misturam graficamente à iconografia baiana, católica, clamando numa espécie de oração às deusas do sol africano.

No andradiano “Oxóssi na cidade”, o ma­chado de Machado, com todos os duplos sen­tidos possíveis, amplia-se para o belíssimo “A caça de Oxóssi”, numa perquirição dramatizada, amostra em cápsula poética de todo o tomo, em que o caçador é também caça, flecha e mira, nos diversos planos da nossa mais bela e cruel realidade. “Batuque” e “Vinte de novembro” lembram, em seu ritmo impecável, cantos de guerra e evocação espiritual que, sobretudo na leitura em voz alta, parecem surgir como uma melodia introdutória para o retumbante fe­chamento com a ode triunfal “Liberata”, sobre a mulher escravizada que conquistou e recon­quistou sua liberdade e a dos filhos ao final do século XVIII na região de Porto Belo, SC.

Cicatrizes abre o catálogo da editora Balaio com altíssimo teor literário e o mais urgente e oportuno olhar histórico, por certo. Mas ante­riormente a isso, esta obra de Carlos Machado insere-se numa categoria ainda mais alta e rara das publicações, aquelas que colocam força criativa e carga reflexiva a serviço da insurrei­ção de nossa humanidade.

Marcílio Godoi é arquiteto, jornalista e escritor. "Úlcera" integra os paratextos do volume Cicatrizes, de Carlos Machado.

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