Espetacularização?

O indecidível que paira sobre a crescente produção literária autoficcional remete-nos, em princípio, à fabulação desmedida e à espetacularização do
sujeito contemporâneo. No exame desse novo fenômeno e da recorrência ao termo autoficção para nomear um número extraordinário de produções literárias na contemporaneidade, é válido cumprir um breve percurso e estabelecer alguns marcos históricos.
As escritas de si, na acepção de produção em primeira pessoa que
performa a noção de sujeito, remetem a longínquas tradições do Ocidente.
Nesse sentido, podemos tomar Agostinho como autor da primeira obra
biográfica – As Confissões –, no século IV, apesar das formas da
correspondência já terem registros históricos desde os séculos I e II. Nas
cartas, o conhecimento de si é o motor do registro, mas, para além da
constituição de um sujeito, identifica-se o propósito do ato de mostrar-se: “[...] a
carta, que trabalha para a subjetivação do discurso, constitui ao mesmo tempo
uma objetivação da alma. Ela é uma maneira de se oferecer ao olhar do outro”,
afirma a pesquisadora Diana Klinger.
A partir do Renascimento, a perspectiva é diversa e a escrita de si adota
como eixo um sujeito que descarta a submissão a modelos preestabelecidos.
Montaigne e os ensaios produzidos no século XVI são uma referência
emblemática dessa manifestação, mas já trazem em seu projeto um indivíduo
que se autoriza a valorizar a experiência pessoal como pressuposto para a
análise de diferentes temas.
Na modernidade, o sujeito em crise adota como orientação uma
consciência reflexiva. O deslocamento desse sujeito tem uma de suas
primeiras referências no questionamento de Nietzsche, no século XVIII, ao
cogito cartesiano, à falsa instância do pensar e sua falibilidade enquanto
pressuposto de verdade. Ao retomar essa reflexão, a formulação de Foucault
sobre a verdade a apresenta como elemento constitutivo de um jogo histórico,
que se relaciona tanto com práticas subjetivas como com mecanismos de
poder.
O sujeito que chega ao século XX traz, assim, na bagagem, uma crise
moral e social e um eu múltiplo a conjugar dinâmicas de forças contraditórias. É
esse sujeito cindido que, na expressão estética, depara-se com nova crise,
agora da representação, e com a ruptura da autoridade autoral. Foucault e
Barthes assinalaram, nos anos estruturalistas de 1960 e 1970, essa perda de
nitidez e espessura da figura autoral. A dessacralização do autor dá lugar à
linguagem, à função autor, a criações intervalares, em última instância, a uma
fratura.
Nos finais do século passado e inícios do século XXI, a reivindicação de
lugares de fala e do nome próprio engendram um novo projeto: a autoficção.
Em resposta a Philippe Lejeune e a seu quadro-síntese sobre possibilidades
autobiográficas – que combina pacto autobiográfico com a presença ou não do
nome do autor e deixa uma casa vazia - na publicação O pacto autobiográfico,
de 1973, Serge Doubrovsky responde, no romance Fils, de 1977, com a
criação do neologismo. A partir de então, uma horda de autores emergiu de
seus laboratórios de artífices para reivindicar novo contrato de subjetividade.
Na literatura, essa autorreferência da primeira pessoa, sem compromisso com
a cronologia, a linearidade e a verificabilidade, assinala, segundo Diana Klinger,
em Escritas de si, escritas do outro (2007), novas perspectivas de
questionamento da identidade, caracterizadas não só pela crítica do sujeito
e pelo proposital embaralhamento da verdade, mas especialmente pela cultura
da espetacularização.
Referências
KLINGER, D. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada
etnográfica. 3. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.
LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização de Jovita
Maria Gerheim Noronha. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
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