top of page
valpizzani

Úlcera

Atualizado: 20 de mar. de 2023

Marcílio Godoi

Não seria de se estranhar se na capa deste livro viesse uma tarja: “Poemas baseados em fatos reais”, para que ficasse decretado de partida o poder destes versos em nos expor nosso mons­truoso pecado original, a escravidão. Mas com Francis Ponge, que se reivindica “o poeta das coisas”, não o poeta do eu, aprendemos que a linguagem serve pra descrever, não para conven­cer ideologicamente ou provocar eventuais sen­timentalidades. Destes factuais novos Poemas negros, para citar a não pacificadora obra que o alagoano da serra da Barriga, Jorge de Lima, escreveu em 1947, partimos para um embate.

“Um verbo” já nos dá logo no primeiro poe­ma o tom do jogo que se inicia, o da linguagem provocativa a revolver com seu revólver não um incômodo, mas a ação de fustigar a nossa mais exposta chaga: racista. A ancestralidade surge aos poucos, mas definitiva, anunciando o poder de destruição que a linguagem possui. Incrível como pode-se imprimir com tanta elegância e ritmo um grito de guerra necessário e inquietante com “ga­ses paralisantes/silêncios mais pesados que o ar”. Percebemos a partir daí o impacto surdo e cor­tante do que já não se situa mais apenas na pele, esta cicatriz ulcerada encontra-se medularmente posicionada: “onde o chumbo não penetra/onde o aço não vai.”, no poema que dá título à coletânea.

Em “Dores e moendas”, soa-nos um canto dramático ao fundo, em que as ondas venci­das pelos navios negreiros parecem se chocar com a pós-dureza do engenho, ultrapassando em muito a questão convival da casa-grande com a senzala, vindo nos estapear o rosto num triângulo de açoites roendo, moendo, gemen­do Bahia, Minas e Pernambuco. A imagem do silencio “empedrado” no abafamento dos poe­mas soca-nos sequencialmente mais uma vez o estômago e se reprisa em alguns poemas da seção “Vozes”, como um mapa da violência, do emudecimento e do apagamento oficiais.

Na segunda parte, “Figuras” se erguem pela retomada da voz negra de Rosa Parks, Nina Si­mone, Madame Satã, entre outras personagens da diáspora negra, com destaque para o par de sonetos dedicados a Audálio Dantas.

A seção “Beco da Esperança” traz toda a circunstância absurda de poemas que parecem tirados de notícias de jornal. Na genial estro­fe de “Néons”, em que percebemos o ritmo dos corpos caindo na progressão métrica dos ver­sos, na inversão de acusações em “Boletim de ocorrência” ou ainda no premonitório “Congo­lês”, acode-nos a atualidade infernal dos poe­mas, em que as personagens operam em nossa mente um desfile de corpos marcados por uma condenação expressa à morte.

Na seção “Batuque”, o poeta parece dar­-nos uma instável resposta ao desesperador capítulo anterior e os poemas se avolumam em outra sonoridade, mais luminosa, evocando reverencialmente seu atavismo em versos po­tentes e nas figuras dos orixás que se misturam graficamente à iconografia baiana, católica, clamando numa espécie de oração às deusas do sol africano.

No andradiano “Oxóssi na cidade”, o ma­chado de Machado, com todos os duplos sen­tidos possíveis, amplia-se para o belíssimo “A caça de Oxóssi”, numa perquirição dramatizada, amostra em cápsula poética de todo o tomo, em que o caçador é também caça, flecha e mira, nos diversos planos da nossa mais bela e cruel realidade. “Batuque” e “Vinte de novembro” lembram, em seu ritmo impecável, cantos de guerra e evocação espiritual que, sobretudo na leitura em voz alta, parecem surgir como uma melodia introdutória para o retumbante fe­chamento com a ode triunfal “Liberata”, sobre a mulher escravizada que conquistou e recon­quistou sua liberdade e a dos filhos ao final do século XVIII na região de Porto Belo, SC.

Cicatrizes abre o catálogo da editora Balaio com altíssimo teor literário e o mais urgente e oportuno olhar histórico, por certo. Mas ante­riormente a isso, esta obra de Carlos Machado insere-se numa categoria ainda mais alta e rara das publicações, aquelas que colocam força criativa e carga reflexiva a serviço da insurrei­ção de nossa humanidade.

Marcílio Godoi é arquiteto, jornalista e escritor. "Úlcera" integra os paratextos do volume Cicatrizes, de Carlos Machado.

9 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page