Marcílio Godoi
Não seria de se estranhar se na capa deste livro viesse uma tarja: “Poemas baseados em fatos reais”, para que ficasse decretado de partida o poder destes versos em nos expor nosso monstruoso pecado original, a escravidão. Mas com Francis Ponge, que se reivindica “o poeta das coisas”, não o poeta do eu, aprendemos que a linguagem serve pra descrever, não para convencer ideologicamente ou provocar eventuais sentimentalidades. Destes factuais novos Poemas negros, para citar a não pacificadora obra que o alagoano da serra da Barriga, Jorge de Lima, escreveu em 1947, partimos para um embate.
“Um verbo” já nos dá logo no primeiro poema o tom do jogo que se inicia, o da linguagem provocativa a revolver com seu revólver não um incômodo, mas a ação de fustigar a nossa mais exposta chaga: racista. A ancestralidade surge aos poucos, mas definitiva, anunciando o poder de destruição que a linguagem possui. Incrível como pode-se imprimir com tanta elegância e ritmo um grito de guerra necessário e inquietante com “gases paralisantes/silêncios mais pesados que o ar”. Percebemos a partir daí o impacto surdo e cortante do que já não se situa mais apenas na pele, esta cicatriz ulcerada encontra-se medularmente posicionada: “onde o chumbo não penetra/onde o aço não vai.”, no poema que dá título à coletânea.
Em “Dores e moendas”, soa-nos um canto dramático ao fundo, em que as ondas vencidas pelos navios negreiros parecem se chocar com a pós-dureza do engenho, ultrapassando em muito a questão convival da casa-grande com a senzala, vindo nos estapear o rosto num triângulo de açoites roendo, moendo, gemendo Bahia, Minas e Pernambuco. A imagem do silencio “empedrado” no abafamento dos poemas soca-nos sequencialmente mais uma vez o estômago e se reprisa em alguns poemas da seção “Vozes”, como um mapa da violência, do emudecimento e do apagamento oficiais.
Na segunda parte, “Figuras” se erguem pela retomada da voz negra de Rosa Parks, Nina Simone, Madame Satã, entre outras personagens da diáspora negra, com destaque para o par de sonetos dedicados a Audálio Dantas.
A seção “Beco da Esperança” traz toda a circunstância absurda de poemas que parecem tirados de notícias de jornal. Na genial estrofe de “Néons”, em que percebemos o ritmo dos corpos caindo na progressão métrica dos versos, na inversão de acusações em “Boletim de ocorrência” ou ainda no premonitório “Congolês”, acode-nos a atualidade infernal dos poemas, em que as personagens operam em nossa mente um desfile de corpos marcados por uma condenação expressa à morte.
Na seção “Batuque”, o poeta parece dar-nos uma instável resposta ao desesperador capítulo anterior e os poemas se avolumam em outra sonoridade, mais luminosa, evocando reverencialmente seu atavismo em versos potentes e nas figuras dos orixás que se misturam graficamente à iconografia baiana, católica, clamando numa espécie de oração às deusas do sol africano.
No andradiano “Oxóssi na cidade”, o machado de Machado, com todos os duplos sentidos possíveis, amplia-se para o belíssimo “A caça de Oxóssi”, numa perquirição dramatizada, amostra em cápsula poética de todo o tomo, em que o caçador é também caça, flecha e mira, nos diversos planos da nossa mais bela e cruel realidade. “Batuque” e “Vinte de novembro” lembram, em seu ritmo impecável, cantos de guerra e evocação espiritual que, sobretudo na leitura em voz alta, parecem surgir como uma melodia introdutória para o retumbante fechamento com a ode triunfal “Liberata”, sobre a mulher escravizada que conquistou e reconquistou sua liberdade e a dos filhos ao final do século XVIII na região de Porto Belo, SC.
Cicatrizes abre o catálogo da editora Balaio com altíssimo teor literário e o mais urgente e oportuno olhar histórico, por certo. Mas anteriormente a isso, esta obra de Carlos Machado insere-se numa categoria ainda mais alta e rara das publicações, aquelas que colocam força criativa e carga reflexiva a serviço da insurreição de nossa humanidade.
Marcílio Godoi é arquiteto, jornalista e escritor. "Úlcera" integra os paratextos do volume Cicatrizes, de Carlos Machado.
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